Lançamento no Chile do projeto "Transitions" sobre a ética e a política da desinstitucionalização psiquiátrica na América do Sul

Em um seminário realizado em 18 de agosto na Escola de Saúde Pública da Universidade do Chile, foi apresentado oficialmente no país o projeto internacional Transitions, financiado pela Wellcome Trust e coordenado pelo King's College London, que busca estudar comparativamente os processos de desinstitucionalização psiquiátrica no Chile e no Brasil, integrando perspectivas acadêmicas, éticas, políticas e de ativismo social.
A iniciativa é liderada pelo acadêmico Cristian Montenegro e conta com a participação de dois pesquisadores de pós-doutorado: Felipe Szabzon, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil), e a antropóloga Sofía Bowen, da Escola de Saúde Pública da Universidade do Chile.
O projeto busca não apenas analisar a desinstitucionalização psiquiátrica como uma política pública de saúde, mas também compreendê-la como um processo carregado de debates éticos, lutas sociais e produção de conhecimento. Nas palavras dos organizadores, o objetivo é comparar as trajetórias de ambos os países e situar suas especificidades em um contexto internacional mais amplo, fortalecendo também redes de colaboração em torno da saúde mental e dos direitos humanos.
A diretora da Escola de Saúde Pública, Dra. Lorena Rodríguez Osiac, abriu o evento destacando a importância deste marco: “Transitions é um belo nome para um projeto que nos convida a reconhecer nossas diferenças e a pensar em como construir uma comunidade a partir da autonomia e dos direitos humanos”. Nessa linha, ela acrescentou que o desafio é também deixar um legado: “O importante é que possamos sistematizar não apenas as evidências, mas também as experiências daqueles que fizeram parte de uma abordagem mais humana em saúde mental”.

Por sua vez, durante as boas-vindas, a Dra. Olga Toro, co-investigadora do projeto, destacou o valor do trabalho colaborativo e de sua abordagem transdisciplinar: “Este é um projeto que contribui com a colaboração internacional e nos situa no contexto latino-americano, onde a Faculdade de Medicina da Universidade do Chile tem um interesse e uma responsabilidade especiais”. Para a acadêmica, trata-se de uma oportunidade inédita: “A história da desinstitucionalização já foi escrita, mas não a partir da América Latina. Este é o primeiro esforço para narrá-la a partir de seus próprios atores”.
No início das apresentações, o pesquisador principal, Dr. Cristian Montenegro, agradeceu o apoio institucional recebido no Chile e explicou o alcance do estudo: “Embora falemos de lançamento, também comemoramos o fato de termos conseguido criar as condições para fazer circular recursos, conhecimentos e experiências entre diferentes países”. O acadêmico enfatizou que a desinstitucionalização continua sendo um tema atual: “Em alguns lugares, ela é vista como um processo do passado; no entanto, as tensões atuais, éticas e políticas, mostram que se trata de um debate aberto que requer a incorporação da voz de pacientes, cuidadores e profissionais de saúde”.
Em um segundo momento de sua intervenção, Montenegro destacou a importância de entender o local em diálogo com o global: “Nosso interesse é observar como os debates internacionais foram reinterpretados em contextos específicos, como os do Chile e do Brasil, atravessados por ditaduras, transições democráticas e reformas neoliberais”. E acrescentou: “Queremos visibilizar como essas realidades políticas e sociais marcaram o rumo da reforma psiquiátrica e como hoje tensionam a discussão sobre direitos e reparação”.
Do lado chileno, a Dra. Sofía Bowen, pesquisadora de pós-doutorado do projeto e acadêmica da Escola de Saúde Pública, afirmou que se trata de um processo ainda em disputa: “Ao contrário da visão internacional, que costuma considerá-lo encerrado, no Chile a desinstitucionalização continua em andamento, com avanços e retrocessos que não podem ser compreendidos sem seu contexto social e político”. Em sua apresentação, ela acrescentou: “Nosso objetivo é contribuir com uma visão crítica que recupere a especificidade do caso chileno e visibilize as tensões atuais na implementação das políticas”.
Bowen também detalhou a metodologia que aplicará no país: “Vamos revisar arquivos, entrevistar atores-chave e observar etnograficamente os espaços de atendimento para compreender como as políticas se traduzem em práticas e experiências cotidianas”. Nesse contexto, ela destacou: “Este projeto é também um esforço para integrar vozes diversas —usuários, profissionais, familiares— que são fundamentais para repensar o rumo da saúde mental no Chile”.
O seminário também deu espaço ao ativismo e à experiência vivida, com a intervenção de Raúl Ariz Abarca, locutor do grupo Radio Diferencia em Valparaíso, mestre em Didática das Ciências Experimentais pela PUCV e doutor (c) em Ciências com menção em Química pela mesma universidade. Com mais de 40 anos de experiência como usuário de saúde mental, ele relatou a trajetória do grupo: “Durante quase duas décadas, trabalhamos dentro do Hospital Psiquiátrico de Valparaíso, psicoeducando, defendendo direitos e gerando comunidade”. No entanto, ele também denunciou situações de discriminação: “A desinstitucionalização não ocorre apenas nos hospitais; também enfrentamos estigmas e más práticas na sociedade, que limitam nossa voz e nos tornam vulneráveis”.
Por fim, o acadêmico da Escola de Saúde Pública, Dr. Carlos Madariaga, abordou os desafios da saúde mental coletiva: “A institucionalização psiquiátrica não é apenas um problema do passado, mas uma tensão não resolvida que persiste no Chile”. Inspirado no pensamento de Franco Basaglia, ele sustentou que é necessária uma mudança estrutural: “Não basta transformar instituições; é preciso construir comunidade e gerar novos paradigmas para uma prática emancipatória da saúde mental”.
Madariaga também alertou sobre os riscos atuais: “Hoje continuamos vendo como, mesmo em dispositivos comunitários, surgem novas formas de institucionalização, ligadas à precariedade, à burocratização ou ao assistencialismo”. Por isso, ele afirmou: “A saída não pode ser apenas técnica; precisamos repensar a partir da saúde mental coletiva, incorporando a dimensão social, política e histórica dos processos de sofrimento”.
O seminário foi encerrado com um espaço de diálogo aberto entre os participantes e o convite para fortalecer as redes de colaboração entre pesquisadores, profissionais e ativistas. O projeto Transitions continuará sendo desenvolvido nos próximos anos, gerando conhecimento comparativo entre o Chile e o Brasil e situando seus aprendizados no âmbito da saúde mental global.
Registro audiovisual do encontro: https://youtu.be/KFEXyP9HwFQ
Crédito de todas as fotografias: Escuela de Salud Pública, Universidad de Chile
