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Lançamento do Projeto Transitions no Rio de Janeiro: Construindo Pontes, Preservando a Memória e Criando Espaço para as Vozes dos Usuários

Felipe Szabzon and Cristian Montenegro

Um beco deserto no Rio de Janeiro com um mural que mostra o rosto de uma pessoa sobre um fundo preto cheio de bolhas

No início deste mês, de 12 a 14 de agosto de 2025, estivemos no Rio de Janeiro para o lançamento brasileiro do projeto Transitions – The Ethics and Politics of Psychiatric Deinstitutionalisation in South America. Realizado no Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ), o evento reuniu pesquisadores, ativistas, usuários de serviços e formuladores de políticas para refletir sobre a ética e a política da reforma psiquiátrica no Brasil e no Chile. Paralelamente ao seminário, visitamos lugares-chave ligados à história e à transformação em curso do cuidado psiquiátrico no Rio de Janeiro. O que segue são algumas reflexões desses dias: sobre a construção de pontes institucionais, o papel da memória na promoção da mudança e a centralidade das vozes de usuários na conformação do debate.

1. Construindo uma Ponte Administrativa e Política

O lançamento brasileiro marcou a consolidação de uma ponte — de confiança, alinhamento administrativo e propósito compartilhado — que atravessa três países, três línguas e três culturas burocráticas distintas.

Por trás da programação da manhã havia mais de um ano de trabalho preparatório: negociação de contratos, traduções, revisões éticas e acordos institucionais entre o King's College London, o Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ) e a Escuela de Salud Pública. Universidad de Chile. Isso não foi mero “trabalho administrativo”. Tratou-se da construção de uma infraestrutura operacional projetada para sustentar a colaboração nos eixos Norte–Sul e Sul–Sul, fundamentada no compromisso com a paridade e a reciprocidade.

Como lembrou Rossano Cabral Lima ao público, o evento foi “ao mesmo tempo o início de uma nova etapa e a culminação de um processo preparatório prolongado” — que se apoiou nas forças de cada parceiro e em relações cultivadas ao longo de anos de diálogo.

O Brasil desenvolveu uma vasta produção acadêmica no campo da saúde mental, gerando reflexões críticas profundas sobre seu processo de reforma. Essa reflexividade foi ao mesmo tempo fruto e força motriz de uma das experiências mais abrangentes de desinstitucionalização psiquiátrica da América Latina e do mundo. Contudo, por diversos motivos — desde barreiras linguísticas até a própria dimensão continental do país — esses debates muitas vezes permaneceram voltados para dentro, com diálogo limitado com experiências internacionais. Construir pontes para uma pesquisa colaborativa e comparativa, portanto, representa um caminho promissor: nos permite aprender não apenas sobre nós mesmos, mas também com e a partir dos outros.

Para que esse aprendizado seja possível, a infraestrutura construída nesse trabalho preparatório será indispensável.

2. Memória Antes da Cultura: Visitando Lugares de Transformação

Durante nossa estadia no Rio, visitamos dois lugares que nos fizeram repensar como entendemos a mudança em instituições psiquiátricas: o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) e o Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira (IMNS).

Embora diferentes em seus propósitos imediatos, ambas instituições compartilham uma visão de mundo que orienta a forma como atuam, refletem e promovem transformações. O LAPS é um laboratório de pesquisa situado na Fiocruz, um dos principais centros de pesquisa em saúde do Brasil.

No LAPS, encontramos o projeto “Memória da Reforma” — um sonho de décadas de Paulo Amarante, uma liderança do processo de reforma e de sua difusão, junto de colegas da instituição. Diferente de histórias institucionais que acompanham a trajetória linear de um hospital ou a biografia de uma figura de destaque, este acervo foca no movimento da Reforma Psiquiátrica em si mesmo: seus agentes, slogans, campanhas e propostas políticas. Sua unidade de observação é difusa e coletiva, resistindo a fronteiras fáceis. Ao fazê-lo, reconhece que a reforma psiquiátrica não é simplesmente uma sequência de marcos normativos formais, mas uma constelação de atividades sociais e movimentos políticos ativos.

Mais de 30 anos após o início desse processo, existe hoje uma riqueza de documentos, materiais de divulgação, fotografias, leis e portarias, além de testemunhos de indivíduos — tanto figuras icônicas quanto de outros menos visíveis — que desempenharam papéis nessa história. O projeto vem catalogando esses diversos materiais, contando a trajetória de um profundo movimento social que ganhou força significativa no país e resistiu ao longo de décadas, apesar das mudanças no cenário político nacional. Politicamente comprometido, o projeto busca afirmar a identidade do Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, garantindo que a história dessa luta social não se perca.

Já o IMNS é uma instituição de saúde mental com forte legado histórico. Seu capítulo mais conhecido é o trabalho pioneiro da Dra. Nise da Silveira, iniciado na década de 1940. Hoje, a instituição leva seu nome em homenagem à “psiquiatra rebelde” que rejeitou os tratamentos agressivos de sua época. Nise abriu caminho para que outros consolidassem o Movimento Antimanicomial, fazendo do Instituto um centro fundamental de difusão de novas ideias em psiquiatria.

Desde os anos 2000, e em consonância com as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, o IMNS iniciou o desmonte de seu sistema manicomial. Por meio de iniciativas de desinstitucionalização, ampliou serviços locais (incluindo emergências psiquiátricas e Centros de Atenção Psicossocial) e ressignificou suas instalações em projetos culturais, sociais e de geração de renda, envolvendo usuários, trabalhadores e a comunidade. Hoje, continua redirecionando demandas hospitalares para estruturas comunitárias de saúde mental, reforçando seu compromisso com a desinstitucionalização.

No IMNS, a lição foi sintetizada numa frase de sua diretora, Érika Pontes e Silva: “Primeiro vem a memória, depois vem a cultura.”

Desde 2011, o antigo complexo asilar não passou por um fechamento súbito, mas por uma desconstrução deliberada e reflexiva. O primeiro passo foi compreender a instituição e suas transformações em detalhe. Arquivistas, museólogos e historiadores profissionais foram chamados para documentar e interpretar sua trajetória antes de criar um museu de memória institucional. Esse processo reformulou a transformação, não como um decreto administrativo vindo de cima, mas como um diálogo enraizado no conhecimento da complexidade da história da instituição.

Como destacou Érika, essa abordagem também funciona como salvaguarda em tempos de ameaças autoritárias: para defender as conquistas da reforma, é preciso conhecer sua história de forma rigorosa e profissional. Aqui, a própria memória se torna intervenção transformadora — um modo de estabilizar o chão de um processo de mudança.

Nesse contexto, o Centro de Documentação e Memória do IMNS desempenha papel crucial, fomentando formação e pesquisa em saúde mental, ao mesmo tempo em que preserva a memória e ressignifica espaços hospitalares com novas iniciativas que reconstroem a relação da sociedade com a loucura.

3. Lições da América Latina

No seminário de lançamento, Francisco Ortega sintetizou uma das ambições centrais do projeto Transitions:

“Não se trata do que o Norte Global pode ensinar ao Sul nos processos de desinstitucionalização psiquiátrica, mas do que nós, aqui no Sul Global, podemos ensinar a eles.”

Essa inversão é fundamental. Muitas vezes, as histórias da reforma psiquiátrica no Brasil e no Chile são lidas como adaptações locais de modelos europeus ou norte-americanos. Nosso projeto insiste que essas histórias contêm contribuições originais — conceituais, políticas e práticas — para os debates globais sobre cuidado, comunidade e direitos.

O caso brasileiro, em particular, é marcado por um conjunto de características que o tornam singular em relação aos contextos do Norte Global e, ao mesmo tempo, fonte de valiosas lições para muitos outros países do Sul Global. Entre elas: a abrangência e a escala da reforma; a complexidade geográfica, social e cultural do país; a forte presença da mobilização social; a integração com valores e princípios da Medicina Social Latino-Americana e da Saúde Coletiva — como equidade, universalidade e participação social; além do alinhamento entre dimensões éticas, clínicas e políticas. Ao mesmo tempo, o Brasil é um país que, apesar dos avanços das últimas décadas, enfrentou retrocessos significativos — que também oferecem lições importantes.

Essas especificidades muitas vezes foram negligenciadas ou mal interpretadas em leituras universalizantes da desinstitucionalização, reforçando a importância do projeto que estamos lançando. O Transitions nos convida a pensar a desinstitucionalização não como um modelo único ou exportável, mas como um processo plural, situado e constantemente em disputa.

4. Abrindo Espaço: O Protagonismo dos Usuários

Para nós, o ponto alto do lançamento foi a forma como as vozes de usuários moldaram o debate. A socióloga e ativista Fabiane Valmore deu o tom, tanto como palestrante quanto como facilitadora da participação dos usuários ao longo do evento. Ela foi além de relatar “como é a vida depois do manicômio” e abriu espaço para que reivindicações, demandas e visões dos próprios usuários dominassem a discussão.

A intervenção de Fabiane foi contundente:

“Ainda temos no Brasil manicômios judiciários e comunidades terapêuticas que operam com práticas manicomiais legitimadas e com recursos públicos… essas são expressões dos desafios que ainda precisamos enfrentar.”

Da plateia, usuários, artistas e ativistas falaram sobre dignidade, sobre a política do reconhecimento (“Somos loucos, mas temos talento; só falta reconhecimento”), e sobre a arte como força política (“A estética está muito ligada a algo político… a emoção da pessoa molda muito o que ela vê”).

Alguns profissionais perguntaram como queixas individuais poderiam ser transformadas em garantias de direitos e em ação de políticas públicas, destacando o risco de a participação dos usuários ser reduzida a demandas pontuais. É exatamente aí que o Transitions pretende contribuir: rastreando como conceitos como direitos, comunidade e participação são negociados e redefinidos por diferentes atores — e como podem se conectar a mudanças sistêmicas.

5. Próximos Passos

Nossos dias no Rio — o seminário, as visitas, as conversas — reforçaram uma convicção: a de que a desinstitucionalização psiquiátrica não é apenas um processo técnico de política pública, mas um movimento vivo, contestado e profundamente contextual. Ela requer pontes: entre instituições e países, entre passado e futuro, entre pesquisa e ativismo. Requer memória: como método de transformação e como defesa contra retrocessos. E requer voz: o protagonismo ativo dos mais afetados pelas instituições psiquiátricas, não como participantes simbólicos, mas como coautores da agenda.

O trabalho no Brasil está apenas começando para o Transitions. Nos próximos meses, nossa pesquisa se aprofundará nas histórias e lutas presentes da reforma psiquiátrica brasileira, sempre em diálogo com nosso trabalho paralelo no Chile — cujo próprio lançamento e visitas de campo compartilharemos em nossa próxima publicação.

Vídeo completo do evento de lançamento: https://www.youtube.com/watch?v=Urr6ye6NYjw